Ithaka
É artista plástico. É fotógrafo. É surfista, músico e letrista. Tem por lema uma frase simples: não é o destino que importa mas sim a viagem. Eis Ithaka –“vagabundo profissional”.
Ithaka não é o seu nome de batismo. Mas é aquele pelo qual gosta de ser chamado. Tudo porque um dia lhe foi parar às mãos o poema do grego Konstantínos Kaváfis, intitulado, precisamente, Ithaka: “Quando li pela primeira vez aqueles versos, senti que eram a minha vida e daí em diante passei a usá-los como guia. O poema é extenso mas a mensagem resume-se a isto: a viagem é mais importante do que o destino. E a minha vida é uma grande viagem, umas férias low budget cheias de aventuras”, diz ele num português desembaraçado onde se nota o sotaque do Brasil e do inglês dos Estados Unidos da América.
Get Up
Ithaka nasceu no Orange County da Califórnia e, até começar a viajar, foi americano. Hoje é mais um “cidadão do mundo”, explica. Mas foi nos Estados Unidos que as paixões de vida, que acabaram por se transformar em muitos ofícios, apareceram. A fotografia primeiro: “Foi por intermédio do meu pai, engenheiro e fotógrafo nos tempos livres. Eu, talvez por arrasto, comecei a brincar com máquinas fotográficas aos cinco anos”. O surf também apareceu cedo. “Tinha 12 anos e fui ao Havai com a família de um amigo. Lembro-me como se fosse hoje daquele dia de tubos perfeitíssimos em Honolua Bay [na ilha de Maui]. Eu que até vivia perto do mar na Califórnia e que até fazia bodyboard de vez em quando, nunca tinha visto nada como aquilo. Quis imediatamente começar a surfar e quando voltei a casa vendi a minha bateria – já nessa altura estava ligado à música e tocava numa banda de covers de Led Zeppelin – para comprar uma prancha de surf”.
Os anos foram passando e as paixões foram-se acumulando. Por auto-recreação e em modo autodidata, Ithaka começou a fazer experiências com pintura e escultura usando, entre outros materiais, pranchas de surf como tela e matéria-prima. “No entanto nunca entendi aquilo como arte. Para mim era só mais um hobby, como o surf, a música, a fotografia. Mas um dia, uma namorada que vivia em Los Angeles levou-me a visitar vários museus e galerias de arte contemporânea da cidade e disse-me: ‘Vês, tu és um deles, és um artista’”. E era, de facto.
Ithaka começou então a trabalhar a sério como fotógrafo nos Estados Unidos. Fotografou atores e músicos famosos para revistas não menos ilustres. “Mas aquilo não era o meu estilo, estava muito condicionado a fundos brancos e a outras formalidades que não me davam grande margem criativa. Continuava a fazer as minhas artes plásticas, mas sentia que precisava de mais. Mudei-me para Hollywood e virei-me para o lado mais urbano da arte. Ainda assim não me dei por satisfeito. Faltava-me a aventura.”
Escape from the City of Angels
“Na minha primeira viagem para fora da América do Norte fui parar à Alemanha e fiquei fascinado com a explosão de informação que foi para mim a Europa. Mais tarde, quando perdi o meu pai, decidi que tinha de ir à Grécia – a terra dos seus (e dos meus) antepassados, que ele nunca tinha visitado. Fui conhecer as nossas origens por nós.” Na Grécia, Ithaka reconheceu o seu ADN especialmente na forma como os gregos vêem o mundo real com olhos de fantasia. “Eles [os gregos] têm sempre duas explicações para uma coisa. Se o mar está revolto tanto pode ser por causa de uma tempestade como pode ser uma fúria de Poseidon, e isso fascina-me.”
As suas fotografias e as esculturas que começou a fazer a partir de pranchas de surf (ver caixa), começaram a levá-lo pelo mundo fora, Japão – onde acabou por passar uma longa temporada – incluído. Convencido de que já tinha uma boa dose de aventuras na sua coleção voltou a casa. Mas não demorou muito até querer partir de novo. Ainda tinha fome de cultura europeia e também tinha apetite por lugares com boas ondas. Talvez por isso o próximo destino fosse óbvio.
“Cheguei a Portugal a 13 de julho de 1992 com um bilhete só de ida e com 70 dólares no bolso. Fui direto do aeroporto para o Bairro Alto. Tudo me parecia um filme de Fellini: a luz, as ruas, a sensação de que estava numa máquina do tempo. Uma alucinação.” A única certeza que Ithaka tinha é que em Portugal encontraria a mistura perfeita de surf e cidade, mas Lisboa encarregou-se de lhe dar muito mais. Logo nos primeiros tempos cruzou-se, por mero acaso, com a equipa que estava a trabalhar no filme Manual de Evasão LX94, do realizador português Edgar Pêra. Acabou a fazer as fotos do cartaz do filme. Porque as pranchas de surf ficaram retidas na alfândega, o primeiro inverno em Lisboa não foi passado a surfar como ele queria, mas sim em frente a uma máquina de escrever. E assim apareceram As Aventuras de Korvorão – “um misto de corvo e de tubarão, o Korvorão pode nadar ou voar para qualquer parte do mundo, não está preso entre fronteiras nunca” –, uma série de contos que acabaram por se transformar em esculturas e também uma data de textos que haviam de se transformar em músicas.
“Um dia fui entrevistado para a Rádio Comercial. Um dos produtores gostou de ouvir a minha voz e convidou-me para fazer um programa chamado o Quarto Bairro.” Foi aí que a música, que tinha estado algo adormecida, voltou a tomar conta dele. Ithaka leu alguns dos textos que escreveu nesse inverno chuvoso por cima de instrumentais de hip-hop. “Um género que vi crescer e com o qual convivi muito de perto em Los Angeles especialmente enquanto trabalhei como fotógrafo para a Priority Records”, acrescenta o artista, que não contava que “Get Up”, um poema que começou por ser remisturado pelos Underground Sound of Lisbon alcançasse um sucesso estrondoso, não só nas pistas de dança portuguesas, mas também nas tabelas dos Estados Unidos e no Reino Unido – ainda que, sabe-se lá por obra e graça de quem, o seu nome tenha sumido dos créditos.
Saltwater Nomad
As viagens de Ithaka inspiraram álbuns, poemas e crónicas. “Seabra is Mad” – uma das músicas do ano de 1997 segundo o jornal Público e um dos temas do filme de surf Chasing The Lotus (2006) de Gregory Schelle – é fruto de uma surftrip exploratória às ondas da ilha da Madeira com o big rider português José Seabra, que num dia pesado não hesitou em entrar no mar ainda desconhecido. Já Somewhere South of Somalia, por exemplo, é um álbum inspirado numa viagem de dois meses a esse país do Este africano. “Sou um contador de histórias e a minha música mostra isso, tal como os meus artigos [Ithaka publicou ficções sobre surf em revistas da especialidade, como a Surfer, a Transworld Surf, a Fluir e a Surf Portugal]”.
Depois de Portugal, Ithaka visitou o Brasil a convite do rapper (e surfista) Gabriel o Pensador. Recorded in Rio é um de dois álbuns gravados no Rio de Janeiro. Mas a relação com o Brasil não se ficou por aí. Hoje, é lá, mais propriamente no litoral do sul de São Paulo, que o multidisciplinar artista passa a maior parte do ano. O seu pequeno recanto, a que ele chama Akahtilândia, está envolto em floresta tropical e tem ondas boas e desertas à mão de semear. Longe de tudo e de todos menos de si próprio, na Akahtilândia Ithaka continua a fazer o que mais gosta. Já gravou um álbum – Voiceless Blue Raven –, não deixou de esculpir, de surfar, nem tão pouco de fotografar: “Sabias que fotografei vários insetos dos quais ainda não encontrei nenhuma referência em enciclopédia alguma?”
Artes plásticas, música, fotografia. Não há nenhuma mais forte do que a outra. “Estou envolvido com todas da mesma forma. Estas múltiplas facetas definem-me não como artista, mas como ser humano”. E as viagens também: “Gosto de realidades múltiplas! Tornam o meu mundo mais colorido. Gosto deste estado de ficar entre muitos mundos e entre muitas carreiras. Sou um híbrido”.
por Maria Ana Venturaretrato por Dede Fedrizzi
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