Wednesday, March 22, 2017

Ithaka: LETRAS CONTEMPORÂNEAS "O CAMINHO PARA LADO NENHUM"

Ithaka
LETRAS CONTEMPORÂNEAS
 
 
O CAMINHO PARA LADO NENHUM
    « Com frutos em "Flowers and the color of paint", o álbum datado de 1995 e "Stellafly", já com carimbo deste ano, (curiosamente ambos com o grafismo essencial azul e negro, a que não serão alheios a sua paixão pelo mar e o seu temperamento misterioso), o projecto Ithaka cunhara o panorama musical português pela inovação e particularidade do seu som, única na forma e, como veremos em seguida e como muitos unanimemente reconhecem, também no conteúdo. Autor de poemas ímpares incutidos em musica produzida no nosso país, Ithaka Darin Pappas encara o talento multi facetado que não confirma a regra que diz que "quem tem sete instrumentos, não maneja bem nenhum". Pelo menos este é por ele magistralmente manejado.
    Uma conversa com Ithaka Darin Pappas nunca se pode prever, pelo caracter automaticamente renovativo e que despreende das suas musicas e do seu percurso. E, neste caso, a tendência confirmou-se, quanto mais não seja pela surpresa (agradável, devo acrescentar) que o musico expressou quando lhe comuniquei que o assunto do dialogo era, exclusivamente a componente lírica das suas canções, por ele escritas em inglês, língua natal com que se sente mais à vontade, mesmo para esta entrevista.
    O cenário quase edénico, por ele escolhido, situou-nos numa cavidade rochosa, entre arvores e jardins tropicais, fontes naturais e estatuas sem cabeça, o local onde provavelmente, despidas da pretensão ou da preocupação estilística, os seus poemas adquirem pleno significado e se abrem numa paleta imensa de emoções sinceras e passíveis de provocar no simples ouvinte identificação e habituação.
    Pappas é um homem calmo, sereno e autêntico, que nutre particular afeição pela conversa só pela troca de informação que lhe é inerente e pela possibilidade de se abrir a quem quiser ouvir. Visivelmente apaixonado por musica, à qual dedica grande parte do seu tempo, e pela natureza, que preserva até ao ponto de encher os seus bolsos com invólucros de pastilha elástica, das muitas que ao longo da entrevista consumiu e deitou fora assim que perderam o sabor. É nas pequenas coisas que se encontra o bom e o genial, sempre me contaram, e foi neta entrevista que Pappas se exibiu, como é, como pensa, como sente e como filtra tudo isso para as suas canções.
    Numa canção a componente musical e a componente lírica são indissociáveis ou autónomas, na perspectiva de um cantor e musico?
    Depende do tipo de musica. Obviamente, enquanto escritor, considero ser o casamento das duas coisas o mais importante, mas não acho que boa musica consiga salvar uma letra má e não acho que uma boa letra consiga salvar má musica, percebes? Ambas têm de ser muito boas. Mas a musica exige experiência, boa produção e uma certa quantidade de dinheiro, enquanto as letras não exigem nada disso. Uma pessoa pode criar uma letra com a sua cabeça, e se não sabe escrever pode pedira a alguém para o fazer.... Podemos desculpar má produção, podemos desculpar falta de experiência na área musical, mas acho que uma letra muito idiota não tem desculpa. Não tem de ser uma obra-prima, mas tem de ser algo original e pessoal e vindo do coração. Acho que muitas pessoas simplesmente põem palavras numa canção porque acham que tem de levar palavras. É fácil fazer uma coisa simples que tenha significado e de que as pessoas percebam, por isso não acho que exista uma desculpa para uma má letra.
    Até que ponto se complementam o surf, a escultura e a fotografia com a poesia e a sua transfiguração na musica? Ou seja, serão manifestações artísticas independentes?
    Não posso falar pelas outras pessoas, mas na minha própria vida parece que não tenho escolha... Eu nem me considero um criador, considero-me mais algo como um tradutor, porque traduzo coisas que aconteceram, como uma espécie de jornalismo surreal.... Mas as coisas surgem na mesma onda de energia e muitos dos meus projectos visuais têm efectivamente inspirado historias ou canções, e canções e historias têm inspirado fotografias de arte visual... está tudo realmente ligado. Está ligado com a minha vida, como o surf esta ligado com a minha vida. Às vezes as pessoas pensam que estou a tentar fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas no fundo é tudo completamente a mesma coisa, com ligeiras diferenças, utilizando diferentes suportes, percebes? Uma canção é uma escultura, com um suporte diferente, mas é o mesmo impulso electrónico.
    Observas a tua vida sob um prisma de optimismo, patente em algumas das tuas letras, ou sob um prisma de extremo negativismo, com remorsos pelos tempos, passado, presente e futuro?
    Acho que tem a ver com disposições. Tento não condicionar a minha disposição, tento sentir os meus sentimentos e não olhar só para as coisas de uma forma optimista, por exemplo, embora tenha havido um período da minha vida em que realmente olhei as coisas dessa forma. Soltava as coisas como um pregador cristão renascido, mas essa não é a realidade as pessoas são mal-dispostas e acontecem realmente mas coisas às pessoas. Por isso quando uma coisa negativa acontece (o que não quer necessariamente dizer que tenha uma vida negativa), tento escrever umas notas sobre o assunto, escrever alguma coisa antes de perder esses sentimentos, porque a única altura em que realmente pode gostar de uma coisa é quando se sente. Qualquer emoção, quer se trate de extrema felicidade, extrema tristeza ou extrema fúria. E, de facto, após uma boa noite de sono e umas cervejas, sentes-te mesmo bem. Tento não deixar o tempo dessensiblizar-me para as coisas que efectivamente senti, para que não aconteça que tu chegues e me fales de uma canção minha de que gostaste e eu te responda "ah, pois, isso foi à muito tempo". As coisas dolorosas, quando escreves sobre algo, ou fazes arte visual sobre uma emoção real , isso liberta-te do fardo de passares muito tempo a senti-la só tu. Toma como exemplo o meu pai: se eu escrever sobre uma coisa dessa magnitude, sentirme-ei um pouco melhor. Portanto, é quase pegar em alguma coisa da minha tristeza ou fúria, ou o que quer que seja naquele dia....
    Como um exorcismo?
    Como um exorcismo, sim (risos). Meu Deus, isso é assustador
    Em que medida é o teu pai uma inspiração para as tuas letras?
    Acho que qualquer coisa que ocupe um grande lugar na tua vida vai ser uma inspiração para as tuas letras e o pai foi uma grande parte da minha vida, desde sempre. Quando morreu, foi um importante acontecimento da minha vida e isso obviamente reflecte-se, não só nas coisas que escrevia mas também na arte visual que fazia na altura. Deixou um grande impacto nessas coisas durante muito tempo. Quando comecei a escrever canções, ou coisas que se podiam considerar canções, eram pequenos poemas. O meu irmão e eu, que não morávamos perto do meu pai (ele vivia no Arizona, nós na Califórnia) voltámos poucos meses depois de ele ter morrido, ao local onde ele morreu, visitamos a sua campa e isso trouxe á memória muitas coisas. Foi no carro que escrevi vários poemas que anos mais tarde resultaram em canções. Três das canções do primeiro álbum foram escritas nessa viagem, dentro do carro, "Flowers and the Color of Paint", "Goodcookies" e "Sleepdriver" e há uma canção no novo disco chamada "The Plot" que, apesar de ser uma canção feliz. uma das canções mais felizes dos Ithaka, ironicamente é sobre quando tive de ir escolher uma campa para o meu pai, porque era a única pessoa realmente disponível para o fazer. E tive de ir olhar para cemitérios e pensar sobre onde é que ele quereria dormir, percebes? E era uma coisa do estilo "debaixo de uma arvore, longe do sol" ["under a tree, out of the sun" é uma das frases do refrão de "The Plot", que continua com "a place to rest in a world far gone"]. Diria que o meu pai tem sido uma grande influência na maneira como escrevo letras.
    Em "The Plot" dizes "happiness comes to those who wait (...) diving the goods. not like Christmas at all, more like a garage sale of th dead".
    É sobre quando as pessoas morrem, e há muitas posses físicas para dividir pelas famílias. Quer se trate de coisas valiosas ou não, há tanta confusão quando alguém morre porque existe a vida toda de uma pessoa que precisa de ser dissecada pelos diferentes membros da família. No nosso caso, não havia muito porque lutar, era simplesmente irónico revistar os pertences privados de toda a vida de um homem, uma vida de 60 anos. Nada disto tinha a ver com o Natal, eu e as pessoas a recebermos presentes, mas não era uma ocasião feliz. E tenho a certeza que, se ha coisas que queres recordar, ha também memórias que não queres recordar.
    Achas que, por ambas serem primeiras canções dos discos e por apresentarem uma temática similar que é desenvolvida, podemos comparar  "Street Loyalty" com "The Bum with Blue Blood"?
    Acho que se podem comparar, mas uma é mais uma abordagem cómica ao mesmo assunto. "The Bum with Blue Blood" é mais uma cena de rir-me de mim próprio pelas coisas a que me submeti. Porque o que quer que aconteça na tua vida, no fim do dia foste basicamente tu que escolheste a vida que levaste. Qualquer pessoa tem a opção - qualquer pessoa no mudo livre, devo dizer - de escolher a sua própria vida.
    Outro tema recorrente nas tuas letras é o do contacto com seres sobrenaturais ou criaturas da natureza personificadas, em "FishDaddy" e "Eden by the Sea". É um tema que te agrade especialmente ou simboliza apenas o desenvolvimento da tua fantasia ou da tua imaginação?
    Ambos. "FishDaddy" é na verdade acerca de casamentos birraciais, muitas pessoas não parecem entender isso, mas é disso que se trata. Mas acho bom utilizar animais porque, por vezes, a sua caracterização é muito mais fácil de estereotipar que a de uma pessoa. É mais fácil focarmo-nos na personalidade de um animal do que concentrarmo-nos apenas numa vertente de uma pessoa humana. Por exemplo, um animal feroz pode representar um lado de um ser humano. É a simplificação das emoções humanas, porque os animais tendem para agir de modo mais especifico, enquanto raça, ao passo que os humanos são mesmo complexos. Não é possível contar toda a historia de cada ser humano, e mesmo que tentes apenas ficarias louca com a complexidade. Por isso, ás vezes, é bom utilizar as representações simbólicas de uma personalidade humana.
    Como é que para ti, enquanto narrador sempre na primeira pessoa, é separada a projecção autobiografica (como no tema "Stellafly") da encarnação de personagens (que é sem duvida o estilo encontrado em "King Tardy")?
    Não estou particularmente preocupado, no que diz respeito à musica, com o que sou eu ou com o que é uma projecção ficional. Acho que uma das coisas que mais gosto em muitos dos escritores que mais leio é exactamente o facto de todos falarem na primeira pessoa, em vez de adoptarem uma posição narrativa, o que torna tudo muito mais real. Naõ é como se estivesse a questionar-me sobre se é ou não verdade, isso não é sequer importante, mas traz-te para muito mais perto do assunto. O meu escritor favorito de todos os tempos é um gajo chamado John Fonte que poucas pessoas conhecem e que teve uma enorme influência em alguns escritores da geração beat.Até pode soar muito autobiografico, mas nunca sabemos se é ou não, o facto de falar na primeira pessoa passa pelos mesmos processos mentais pelos quais todos passamos, tão detalhadamente que nunca questionas a veracidade do que te é dito. Para mim é real. Provavelmente é muito mais interessante ouvir alguem que faz letras assim que ouvir alguem que faz letras sobre alguem, algures... Existem duas abordagens à escrita de letras, podes tentar fazer algo com que muita gente se identifique, o que é uma coisa muito genérica, sobre um acontecimento generico que envolve um sentimento muito generico partilhado por todos, ou podes fazer chegar o teu microscópio pessoal e talvez traduzir esses mesmos sentimentos mas de uma forma muito mais especifica, que não necessitem realmente de explicação. Mas ao longo das décadas temos visto tantos escritores de canções a falar de temas genéricos que acho muito mais interessante quando as coisas se tornam mais pessoais.
    Suponho que quem não tiver previo conhecimento de toda a sequência de eventos à composição de "Sunny the Bunny" não percebera a letra no autentico sentido que lhe pretendeste dar. Para quem escreves, para um publico seguidor e esclarecido ou para pessoas que possam atribuir à tua poesia outras interpretações?
    Com a arte vusual e as letras, é obvio que as pessoas vão traduzir as coisas à sua maneira, mas eu gosto de dar informações de fundo, só para trazer as pessoas um bocadinho para mais perto dos sentidos que pretendo fazer. Há muitas coisas que provavelmente não fazem sentido nenhum a ninguem, e é como ir a uma exposição e ver 8 milhões de bolas de papel espalhadas pelo chão e empurradas para um canto. E tu entras e não existe explicação nenhuma e tu ficas assim e dizes "é só um bocado de papel no chão". Mas talvez estas bolas de papel pertençam a um escritor famoso e sejam os restos que ficaram de fora do seu livro. E isso coloca aquelas bolas de papel no chão sob uma perspectiva complectamente diferente. Gosto de fornecer informação quando as pessoas perguntam... e na verdade não posso, é a primeira vez que alguem me pergunta algo de concreto sobre canções especificas e estou realmente muito feliz por alguem ter decidido fazer isto.
    "Spiritual Graveyard" suge-me como uma incursão à mente, uma redescoberta do proprio e uma auto-analise de vida, esperanças e frustrações. Podemos retirar esta interpretação tão intima e pessoal do teu poema?
    É de uma perspectiva pessoal, é basicamente sobre quando as pessoas permitem estar aprisonadas pelas circunstancias. É importante, quando o teu paraíso foi por àgua abaixo, abrir mais janelas.
    E exactamente onde é este teu "Spiritual Graveyard"?
    É na tua propria cabeça, na de toda a gente, há um cemiterio de experiencias. E a pessoa é geralmente o seu proprio coveiro. Existem opções.
    Em letras nas quais descreves uma realidade tão simples como "Goodcookies", o leitor/ouvinte deverá compreender a mensagem como ela é apresentada ou, pelo contrario, interpreta-la encontrando sentidos metaforicos?
    É a pessoa que decide quão fundo quer ir. Muitas das vezes é como um icebergue, há algo à superficie e há geralmente muito mais sob a superficie. Às vezes é só um restinho de gelo, outras vezes há montes de gelo sob a superficie também.»
 
 
Mónica Guerreiro
 
 
 
(in BLITZ nº717 de 11/08/1998)

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