Monday, November 12, 2018

Agora "Recorded In Rio" o novo álbum de Ithaka

Agora Recorded In Rio
por Vanessa Rato
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Estava-se em 1982. A sete anos do fim da Guerra Fria, com George Bush pai na Casa Branca e ainda em plena demonização do espectro soviético, os Estados Unidos preparavam-se para a inauguração, em Washington, do mural de homenagem aos mortos do Vietname - 150 metros de granito preto para mais de 58 mil nomes, o balanço de uma das mais desastrosas opções da política externa norte-americana.
Em plena era de explosão informática, depois de Ronald Reagan e Lech Walesa, a revista "Time" escolhia como Pessoa do Ano nem mais nem menos que o computador pessoal da IBM. Era o ano de "E.T." e "Tootsie". Michael Jackson, em época de ouro, lançava "Thriller". Os Blondie atacavam com "The hunter" e os Clash com "Rock the Casbah". Entretanto, em Los Angeles, três colegas de liceu em plena adolescência testavam a mão numa especialidade menor do pequeno crime, o "Dine'n'Dash".
Começaram por acaso. Um dia, depois de uma sessão particularmente longa de "surf", acabaram a comer juntos num "buffet" chinês onde, no fim, ninguém parecia interessado em receber a conta. Vinte minutos de espera mais tarde, a opção foi sair sem pagar. Inesperadamente, ninguém os seguiu.
Poderia ter sido o princípio de uma espiral em direcção ao abismo de uma casa de correcção juvenil. E na verdade foi, mas apenas para um deles. Acontece que isso seria outra história. O que interessa: três semanas depois do "buffet" chinês, sempre a sacudir areia dos pés e com água a estalar nos ouvidos, o grupo estava a repetir a proeza de almoçar fora de graça a ritmo diário e com técnica apurada. Até que no Bob's Big Boy se cruzaram com uma rapariga chamada "Rita".
em fuga. Não é fácil escapar a uma empregada de mesa que é ex-corredora de fundo, sobretudo quando ela é do tipo de mulher por quem, na verdade, um adolescente prefere mesmo deixar-se apanhar - para aquele a quem importa aqui seguir o rasto, foi o fim de uma carreira no crime, mas, em compensação, o princípio de uma história de amor-até-que-qualquer-coisa-nos-separe e um passo na direcção de um percurso nas artes.
Passaram-se mais de duas décadas. É com este recorte de memória (na primeira pessoa e com muito daquilo a que os britânicos chamariam "humor de guilhotina") que arranca "Recorded in Rio", o quarto álbum do projecto Ithaka - 15 faixas de hip-hop "old school" com incursões pela soul e um "todos-sabores" electro, blues, jazz, reggae e ambiências latinas (Brasil em fantasma, mas também México) com eco de banda sonora sobre "spoken word".
O CD (não, ainda não sabe quando nem por quem será lançado em Portugal, mas está garantido que sairá depois do lançamento nos EUA pela OP, da Warner) chegou por correio com carimbo californiano, mas não veio sozinho. A acompanhá-lo, um pormenorizadissimo dossier com tudo o que se possa querer saber sobre o "background" e processo evolutivo de cada um dos temas.
Aparentemente, não há nada a esconder - é o lema "live it, write it, rap it": "Os artistas que eu admiro não são sequer, se calhar, os que têm melhores resultados. Interessam-me os processos, por isso gosto de pessoas que não têm medo de se expor. A pessoa média tem tanto medo de se mostrar que a podemos conhecer durante anos sem realmente saber quem é", diz o próprio "Fish Daddy" Ithaka Darin Pappas.
Para ilustrar a ideia, não dá um exemplo, faz menção a um verdadeiro ídolo: "Veja-se o Bukowski. Pode-se pensar: é uma merda! Mas é a merda dele. É um trabalho absolutamente honesto. Isso é o mais importante."
(Aparte absolutamente fiável: em 1996 alguém deu a ouvir o tema "Umbilibus" de "Flowers and the Color of Paint" à viúva do escritor; ela gostou tanto que ao saber que Pappas era um fã lhe mandou um pacote com vários livros e uma preciosa camisa azul ainda cheia de nódoas de vinho - ele nunca a lavou, "para não perder a alma" e continua a vesti-la de vez em quando).
in Portugal. São 9h45 em Portugal continental, oito horas menos na California, ou seja, 2h45 - tarde para quem acorda às 7h para apanhar as praias vazias e as melhores ondas. Mas não é por isso que, do outro lado da linha, Pappas arrasta a voz e enrola as palavras. Ele fala assim, para dentro, como quem rumina o que diz, numa "coolness" temperada entre West Hollywood, Korea Town, as praias de South Bay e, basicamente, qualquer canto recôndito do planeta que venha à memória.
O termo "globe-trotter" seria um bom atalho para falar das suas deambulações mundiais, não fosse dar-se o caso de lhe ficar tão mal. É que, contrariamente àqueles que se deixam catapultar de lugar em lugar, com motor de auto-propulsão à beira da implosão, Pappas gosta de se demorar nos sítios por onde passa. Foi assim que acabou por ficar por Lisboa quase seis anos.
Para os mais esquecidos: a chegada foi em 1992 e a partida só em 98, pelo meio ficaram dois álbuns, "Flowers and the Color of Paint" (1995) e "Stellafly" (97), considerado por alguns como "o mais poderoso e consistente" registo nacional desse ano. Em termos musicais, entre muitas outras colaborações, ficou ainda a letra do internacionalizadíssimo "So get up" para os Underground Sound of Lisbon.
É o lado público. Há o privado: a aterragem com 70 dólares no bolso e o contacto de um obscuro advogado norte-americano a precisar de ver recuperada uma casa centenária no Bairro Alto.
"Em termos musicais, a minha vida artística nasceu em Portugal. Nunca tinha falado para um microfone. Na verdade, nunca tinha sequer visto o interior de um estúdio de gravação", diz Pappas. Fotógrafo e escultor, o músico-por-vir foi vivendo uma sucessão de "acidentes", em geral felizes.
Os encontros com General D, Boss AC, Yen Sung, Pedro Passos. "Ganzas", Super Bock e caldo verde. Está tudo em "Recorded in Rio": depois de "Dine'N'Dash" damos um salto de dez anos (que passa por cima de 18 meses em Tóquio) e, no segundo tema, "...in Portugal", o álbum de memórias abre-se no capítulo nacional. É um tributo "à minha segunda casa". O tom é nostálgico e a batida funk.
Não será o tema mais forte do álbum, mas isso é pouco relevante: tal como o anterior "Somewhere South of Somalia" (2001) - com o produtor-engenheiro Conley "Conman" Abrams (TuPac, Queen Latifa, Snoop Doggy Dog), que conta as então recentes aventuras na África Oriental -, "Recorded in Rio" é também mais um diário a viver página a página que uma cruzada pelo tema "punch". E tal como esse último, "Recorded..." é, como já se poderá ter adivinhado pelo seu título, fruto de (mais) uma etapa de viagens. A consequência: todo um novo conjunto de colaborações.
Sem rodeios: "Prefiro não ver as mesmas caras todos os dias", diz Pappas em "Technically a Failure" - "I split. Escape. Evaporate". O exagero é artístico, mas na "vida real" o tema do escapismo "beat" versão "remastered" persiste: "Não quero repetir experiências. Não imagino gravar num mesmo estúdio. O desconhecido traz uma energia muito particular, muito inspiradora."
Gabriel o Pensador era um amigo já dos tempos de Portugal e em 2001 a passagem por sua casa tinha contornos de viagem de lazer. Só que quando somos uma pequena máquina de produção independente e em auto-gestão a vida não se compartimenta de forma estanque.
"Nessa altura conheci muita gente e uma das coisas que mais me impressionou foi a maneira como no Brasil as pessoas ainda fazem as coisas por amor. Nada como em L.A., onde tudo é altamente profissionalizado."
Os colaboradores de ocasião foram aparecendo, quase por acaso, pelas instalações do estúdio Monoaural. E foram ficando: o próprio Grabriel o Pensador, Bnegão (Planet Hemp), a actriz e cantora Thalma de Freitas, os baixistas Liminha (Os Mutantes) e Alberto Continentino (Ed Motta), Pepe Cisneros (um "transplante cubano para o Rio), o baterista Cézar "Bodão" Farias (Lulu Santos e Fernanda Abreu), o teclista Claudinho Andrade (Gilberto Gil)...
A produção no Brasil ficou a cargo de Berna Cappas e em Los Angeles, de novo com Conley Abrams.
Foram quatro meses de trabalho de grupo a juntar aos outros quatro que Pappas já tinha passado a trabalhar a solo na Califórnia. Depois do assombrado "Muerto escondido", o terceiro tema do álbum, sobre uma passagem negra por Puerto Escondido, no México, onde "men walk on water e zombies walk the streets", o quarto tema fala dessa experiência brasileira: é uma adaptação do tema "Umbilibus" de "Flowers and The Color of Paint" (1995), uma rábula sobre artistas que aos 37 anos e com quatro álbuns, continuam a ter que andar de autocarro, mesmo no Brasil: "Yeah, right here on the mothafucking bus".

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